terça-feira, 17 de maio de 2011

Para a continuação dos debates


Os seguintes trechos retirados do livro (p. 78) particularmente nos chamou muito a atenção, por isso destaco-os:



"A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido.

Nasceu uma sensibilidade, que traçou uma linha, determinou um limiar, e que procede a uma escolha, a fim de banir. O espaço concreto da sociedade clássica reserva uma região de neutralidade, uma página em branco onde a vida real da cidade se vê em suspenso: nela, a ordem não mais enfrenta livremente a desordem, a razão não mais tenta abrir por si só seu caminho por entre tudo aquilo que pode evitá-la ou que tenta recusá-la. Ela impera em estado puro num triunfo que lhe é antecipadamente preparado sobre um desatino desenfreado. Com isso a loucura é arrancada a essa liberdade imaginária que a fazia florescer ainda nos céus da Renascença. Não há muito tempo, ela se debatia em plena luz do dia: é o Rei Lear, era Dom Quixote. Mas em menos de meio século ela se viu reclusa e, na fortaleza do internamento, ligada à Razão, às regras da moral e a suas noites monótonas."


Ressaltei em negrito algumas palavras e frases que, no meu sentir, expressam de maneira elaborada a ideia que foi trabalhada nos argumentos alinhavados por Foucault no capítulo "A Grande Internação". Tentei sustentar no nosso último encontro este aspecto de invenção que ele atribuiu ao internamento no séc. XVII, criação esta que serviu como medida econômica e precaução social, diferindo do entendimento acerca da prisão da Idade Média. Esse ponto dialoga intimamente com o que em seguida foi destacado por Foucault no que diz respeito ao momento anterior, na história do desatino, quando a loucura passou a ser percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho e da impossibilidade de integração no grupo. Daí é que se torna possível visualizar a articulação feita pelo mesmo, no que se relaciona às novas atribuições dadas à pobreza e ao trabalho no séc XVII, com o intuito de aproximar tais "novidades" com a experiência da loucura e a modificação de seu sentido no mesmo período histórico.


Depois seguirei minha reflexão acerca destas importantíssimas questões nos comentários.


Aguardo manifestações.

3 comentários:

  1. Comentarei com o auxílio de um texto, ou melhor, comentarei, sugerindo um texto bem interessante, a palavra "invenção", pois ela remete-se a uma ideia interessante de outro filósofo, o qual o Foucault admirava bastante; trata-se de uma menção à Friedrich Nietzsche e à crítica que este pensador exerceu contra o esquematismo filosófico e moral tradicionais.
    Citarei um parágrafo de um filósofo brasileiro que há muito estuda Foucault e Nietzsche, e as suas relações. Trata-se do Roberto Machado, no livro "Nietzsche e a Verdade". O R. Machado foi um dos responsáveis pelo evento acontecido na década de 70 no RJ, em que M. Foucault palestrou sobre temas que logo depois foram publicados no livro "A verdade e as formas jurídicas".

    "(...)O que Nietzsche pretende então é ressaltar que o conhecimento não faz parte da natureza humana, ou melhor, não está no mesmo nível que os instintos e que não é possível dizer, por exemplo, como Aristóteles no início da 'Metafísica', que todos os homens desejam naturalmente conhecer. O conhecimento não é um instinto do homem, quer dizer, não é da mesma natureza que os instintos. O conhecimento foi produzido, o conhecimento foi inventado, como enuncia a bela fábula do Nietzsche: 'Em algum ponto do universo inundado por cintilações de inúmeros sistema solares houve um dia um planeta em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais orgulhoso e mais mentiroso da 'história universal', mas foi apena sum minuto. Depois de alguns suspiros da natureza o planeta se congelou e os animais inteligentes tiveram que morrer.(...)"

    Bom, este pequeno trecho certamente diz mais do que eu pretendia abordar acerca da palavra invenção; a forma nietzschiana própria de compreender a realidade pede uma análise específica e detida; o que não é o objetivo aqui. De qualquer modo, é um trecho que expõe a questão da invenção em contraposição à ideia de "origem", ou de descobrimento oficial da história humana, ou desígnio humano, dado a partir de uma causa certa vinculada a um fim projetável, medivel e também alcançavel com a evolução humana. Invenção, aqui, refere-se a alguma coisa mesquinha, pequena, mas cujo alcance é abrir um horizonte de compreensão recheado de fatores de poder, cuja hierarquia (valores e pdoeres) não é pré-determinada.

    Continuamos...

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  2. Não podemos comparar a internação com a prisão da Idade Média. Mas podemos compará-la com a prisão da Modernidade?

    Sugiro a indagação exatamente porque tenho a prisão moderna (e o direito penal moderno, por conseqüência) como uma invenção. Uma “ardilosa invenção”.

    Foucault infere que a internação tem valor de invenção exatamente porque a loucura passa, em um dado momento, a ser associada à pobreza, à incapacidade para o trabalho e para a interação social, através de um pensamento ardilosamente constituído para esse fim.

    Não seria o mesmo fenômeno que ocorre na justificação da atuação punitiva moderna, até hoje sustentada pelo discurso hegemônico do Direito Penal?

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  3. Fabrício, esse ponto tbm me chamou a atenção e exatamente nestes termos que tu colocaste.
    A prisão, tal como era praticada na Id. Média difere do modelo de internação difundido a partir da Modernidade. Essa colocação que tu fez está tbm trabalhada na "Verdade e as Formas Jurídicas", se eu não me engano na terceira conferência, na qual ele diz que a prisão só remotamente fazia parte do discuros reformista do século XVIII p/ XIX e, no entanto, ela foi entronada posteriormente através de mecanismos de poder muito bem articulados, os quais vinculavam-se, em certas profundezas, isto é, de modo subjacente, com os auspícios de uma racionalidade hegemônica.

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