domingo, 30 de outubro de 2011

Momento criativo: Machado de Assis

Abaixo um texto do Machado de Assis publicado no final do século XIX. Machado escrevia semanalmente para o jornal, e os acontecimentos relatados expressam situações fáticas. A sua literatura é já uma crítica ao modo de proceder civilizatório em tensão com o realismo. Aqui temos a realidade crua sendo abordada por um literato, abordada não para a sua literatura propriamente, mas para a sua compreensão mesma da froma com as coisas são colocas em certa ordem.

Neste site é possível encontrar a obra completa do Machado: http://machado.mec.gov.br/ 


A Semana, de 31 maio de 1896

Machado de Assis


A FUGA dos doudos do Hospício é mais grave do que pode parecer à primeira vista. Não me envergonho de confessar que aprendi algo com ela, assim como que perdi uma das escoras da minha alma. Este resto de frase é obscuro, mas eu não estou agora para emendar frases nem palavras. O que for saindo saiu, e tanto melhor se entrar na cabeça do leitor.

Ou confiança nas leis, ou confiança nos homens. era convicção minha de que se podia viver tranqüilo fora do Hospício dos Alienados. No bond, na sala, na rua, onde quer que se me deparasse pessoa disposta a dizer histórias extravagantes e opiniões extraordinárias, era meu costume ouvi-la quieto. Uma ou outra vez sucedia-me arregalar os olhos, involuntariamente, e o interlocutor, supondo que era admiração, arregalava também os seus, e aumentava o desconcerto do discurso. Nunca me passou pela cabeça que fosse um demente. Todas as histórias são possíveis, todas as opiniões respeitáveis. Quando o interlocutor, para melhor incutir uma idéia ou um fato, me apertava muito o braço ou me puxava com forca nela gola, longe de atribuir o gesto a simples loucura transitória. acreditava que era um modo particular de orar ou expor. O mais que fazia, era persuadir-me depressa dos fatos e das opiniões, não só por ter os braços mui sensíveis, como porque não é com dous vinténs que um homem se veste neste tempo

Assim vivia. e não vivia mal. A prova de que andava certo, é que não me sucedia o menor desastre. salvo a perda da paciência, mas a paciência elabora-se com facilidade;—perde-se de manhã, já de noite se pode sair com dose nova. O mais corria naturalmente. Agora porém, que fugiram doudos do hospício e que outros tentaram fazê-lo (e sabe Deus se a esta hora já o terão conseguido), perdi aquela antiga confiança que me fazia ouvir tranqüilamente discursos e notícias. 1? o que acima chamei uma das escoras da minha alma. Caiu por terra o forte apoio. Uma vez que se foge do hospício dos alienados (e não acuso por isso a administração) onde acharei método para distinguir um louco de um homem de juízo? De ora avante, quando alguém vier dizer-me as cousas mais simples do mundo, ainda que me não arranque os botões, fico incerto se é pessoa que se governa. ou se apenas está num daqueles intervalos lúcidos, que permitem ligar as pontas da demência às da razão. Não posso deixar de desconfiar de todos.

A própria pessoa,—ou para dar mais claro exemplo,—o próprio leitor deve desconfiar de si. Certo que o tenho em boa conta, sei que é ilustrado, benévolo e paciente, mas depois dos sucessos desta semana, quem Lhe afirma que não saiu ontem do Hospício? A consciência de lá não haver entrado não prova nada; menos ainda a de ter vivido desde muitos anos, com sua mulher e seus filhos, como diz Lulu Sênior. É sabido que a demência dá ao enfermo a visão de um estado estranho e contrário à realidade. Que saiu esta madrugada de um baile? Mas os outros convidados, os próprios noivos que saberão de si? Podem ser seus companheiros da Praia Vermelha. Este é o meu terror. O juízo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese.

Isto, quanto à segunda parte da minha confissão. Quanto à primeira, o que aprendi com a fuga dos infelizes do Hospício, é ainda mais grave que a outra. O cálculo, o raciocínio, a arte com que procederam os conspiradores da fuga, foram de tal ordem, que diminuiu em grande parte a vantagem de ter juízo. O ajuste foi perfeito. A manha de dar pontapés nas portas para abafar o rumor que fazia Serrão arrombando a janela do seu cubículo, é uma obra-prima; não apresenta só a combinação de ações para o fim comum, revela a consciência de que, estando ali por doudos, os guardas os deixariam bater à vontade, e a obra da fuga iria ao cabo, sem a menor suspeita. Francamente, tenho lido, ouvido e suportado cousas muito menos lúcidas.

Outro episódio interessante foi a insistência de Serrão em ser submetido ao tribunal do júri, provando assim tal amor da absolvição e conseqüente liberdade, que faz entrar em dúvida se trata de um doudo ou de um simples réu. Não repito o mais, que está no domínio público e terá produzido sensações iguais às minhas. Deixo vacilante a alma do leitor. Homens tais não parecem artífices de primeira qualidade, espíritos capazes de levar a cabo as questões mais complicadas deste mundo?

Não quero tocar no caso de Paradeda Júnior, que lá vai mar em fora, por achá-lo tardio. Meio século antes, era um bom assunto de poema romântico. Quando, alto mar, o infeliz revelasse, por impulsão repentina, o seu verdadeiro estado mental, a cena seria terrível e a inspiração germânica, mais que qualquer outra, acharia aí uma bela página. O poema devia chamar-se "Der narrische Schiff." Descrição do mar, do navio e do céu; a bordo, alegria e confiança. Uma noite, estando a lua em todo o esplendor, um dos passageiros contava a batalha de Leipzig ou recitava uns versos de Uhland. De repente, um salto, um grito, tumulto, sangue: o resto seria o que Deus inspirasse ao poeta. Mas, repito, o assunto é tardio.

De resto, toda esta semana foi de sangue,—ou por política, ou por desastre, ou por desforço pessoal. O acaso luta com o homem para fazer sangrar a gente pacata e temente a Deus. No caso de Santa Teresa, o cocheiro evadiu-se e começou o inquérito. Como os feridos não pedem indenização à companhia, tudo irá pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. No caso da Copacabana, deu-se a mesma fuga, com a diferença que o autor do crime não é cocheiro; mas a fuga não é privilégio de ofício, e, demais, o criminoso já está preso. Em Manhuaçu continua a chover sangue, tanto que marchou para lá um batalhão daqui. O comendador Ferreira Barbosa, (a esta hora assassinado) em carta que escreveu o diretor da Gazeta e foi ontem publicada, conta minuciosamente o estado daquelas paragens. Os combates têm sido medonhos. Chegou a haver barricadas. Um anônimo declarou pelo Jornal do Comércio que, se a comarca de S. Francisco tornar à antiga província de Pernambuco, segundo propôs o Sr. Senador João Barbalho, não irá sem sangue. Sangue não tarda a escorrer do jovem Estado (peruano) do Loreto. . .

Enxuguemos a alma. Ouçamos, em vez de gemidos, notas de música. Um grupo de homens de boa vontade vai dar-nos música velha e nova, em concertos populares, a preço cômodo. Venham eles, venham continuar a obra do Clube Beethoven, que foi por tanto tempo o centro das harmonias clássicas e modernas. Tinha de acabar, acabou. Os Concertos populares também acabarão um dia. mas será tarde, muito tarde, se considerarmos a resolução dos fundadores, e mais a necessidade que há de arrancar a alma ao tumulto vulgar para a região serena e divina. . . Um abraço ao Dr. Luís de Castro.

Pela minha parte, proponho que, nos dias de concerto, a Companhia do Jardim Botânico, excepcionalmente, meta dez pessoas por banco nos bonds elétricos, em vez das cinco atuais. Creio que não haverá representação à Prefeitura, pois todos nós amamos a música; mas dado que haja, o mais que pode suceder, é que a Prefeitura mande reduzir a lotação à quatro pessoas do contrato; em tal hipótese, a companhia pedirá como agora, segundo acabo de ler, que a Prefeitura reconsidere o despacho, — e as dez pessoas continuarão, como estão continuando as cinco. Há sempre erro em cumprir e requerer depois; o mais seguro é não cumprir e requerer. Quanto ao método, é muito melhor que tudo se passe assim, no silêncio do gabinete, que tumultuosamente na rua: Não pode! não pode!

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

CNS discute política nacional para álcool e outras drogas e publicará resolução

 
 
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) discutiu, na manhã  de quarta-feira (5/10), em Brasília,  a Política Nacional de Combate ao Álcool e Outras Drogas. A Política foi tema de mesa que abriu as discussões da 226ª Reunião Ordinária do CNS, composta pelo ministro da Saúde e presidente do CNS, Alexandre Padilha, pelo coordenador nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, Roberto Tykanori, e pela conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Maria Ermínia Ciliberti. 
Na reunião, o ministro Padilha destacou a importância da construção de redes diferentes para o enfrentamento das diversas situações sobre a temática de drogas. “Qualquer politica de saúde mental para um só equipamento está fadada ao fracasso, pois ela não dá conta de todas as realidades”, constatou.   Segundo ele, o consumo de crack não é uma epidemia, mas independente disto a situação deve ser vista como um desafio ao campo da saúde pública.
A reivindicação de uma audiência com a presidente Dilma Rousseff para tratar do tema com movimentos sociais e usuários de saúde mental foi reforçada por Ermínia Ciliberti: “A voz dos usuários é muito importante nesta questão para o avanço da cidadania e de políticas integradas”, afirmou.
Entre os pontos discutidos pela mesa e entidades presentes na reunião, considerados pelo CNS como eixos orientadores para a Política de Combate ao Álcool e Outras Drogas, estão: a manutenção de ações sobre Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (Caps AD) e Consultórios de Rua; a inclusão de espaços para familiares de usuários; debates entre as comissões do CNS e outros conselhos sobre o tema; e discussões mais enfáticas sobre as internações compulsórias.
Resolução
Ao final dos debates, foi discutida resolução do CNS sobre políticas para a saúde, considerando a Política Nacional de Saúde Mental, álcool e outras drogas e a Lei 10.216/10, que institui a Reforma Psiquiátrica Antimanicomial.
 
Recomendações para que as políticas de enfrentamento de Álcool e Drogas sejam intersetoriais e a orientação a  gestores e projetos de saúde para que as medidas de internação involuntária sigam a Lei 10.216/10 constam do documento. A resolução também indica que entidades ou instituições na Rede de Atenção Psicossocial do SUS sejam orientadas pelos princípios da reforma antimanicomial e que sejam formadas parcerias com entidades da sociedade civil e filantrópicas para a promoção, prevenção e apoio ao tratamento, respeitando as diretrizes do SUS e a Lei 10.216/10 .
 
Apesar de no texto da resolução não estar explícita referências às comunidades terapêuticas, o CFP reafirma sua posição contrária ao financiamento público das referidas instituições, que foram objeto de uma inspeção unificada do Sistema Conselhos, realizada dias 28 e 29 de setembro de 2011, em todos os conselhos regionais de psicologia, em 24 estados brasileiros, e cujo relatório será divulgado amplamente nas próximas semanas.
 
http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/noticias/noticia_111010_001.html

terça-feira, 11 de outubro de 2011

"O dia em que Foucault se fez", por Vladimir Safatle

"O dia em que Foucault se fez", por Vladimir Safatle

Em História da Loucura, francês propôs uma 
nova questão metodológica para a filosofia
 
 
Publicado em 04 de julho de 2011
 
 
 
Vladimir Safatle


Há 50 anos, Foucault publicava Loucura e Desrazão – História da Loucura na Idade Clássica. Embora não fosse seu primeiro livro (Doença Mental e Personalidade é de 1954), ele era o início efetivo de sua experiência intelectual. Pois, por meio dele, Foucault aparecia no cenário filosófico contemporâneo como portador de uma nova questão de método que estaria, a partir de então, sempre associada a seu nome.
A questão de método dizia respeito a seu modo peculiar de “fazer filosofia”.
Contrariamente ao padrão tradicional do comentário de textos e das grandes dissertações sobre autores, Foucault apresentava um trabalho sobre a lenta transformação da experiência da loucura em doença mental, ou seja, em objeto de um discurso que aspira a cientificidade (a psicologia e a psiquiatria) e que visa fundar modos estabelecidos de intervenção.
Nesse sentido, o trabalho poderia ser visto, na verdade, como pertencente a um setor da epistemologia que, na França, era conhecido como “epistemologia histórica”. Uma tradição que não compreende a tarefa da epistemologia como fundação de uma teoria do conhecimento baseada na análise das faculdades cognitivas e da estrutura possível da experiência.
Antes, nomes como Canguilhem, Bachelard, Cavaillès e Koyré são lembrados por vincularem radicalmente reflexão epistemológica e reconstrução de uma história das ciências.
Tratava-se de esclarecer a gênese dos padrões de racionalidade presentes nas ciências por meio de uma profunda articulação entre história das ciências e algo que poderíamos chamar, na falta de um nome mais preciso, de história das ideias ou, se quisermos utilizar um termo mais próximo de Foucault, de história dos sistemas de pensamento.
No entanto, o trabalho de Foucault não era apenas um trabalho de epistemologia da psicologia e da psiquiatria. Sua peculiaridade vinha de sua perspectiva profundamente crítica. Tratava-se de perguntar que tipo de experiência se perdera graças à transformação da loucura em doença mental. O que, para nós, não era mais possível ver e pensar por causa do advento de uma forma de racionalidade.
Nesse sentido, História da Loucura era uma peculiar “contra-história da ciência” que visava expor uma análise dos processos de implementação de critérios discursivos de verdade, de construção de limites e de táticas de exclusão que deveriam ser criticados tendo em vista o desvelamento da maneira com que padrões históricos de racionalidade fundamentam e constroem a legitimidade de suas operações.
No interior dessa contra-história da ciência onde era questão do advento da psiquiatria e da psicologia, Foucault lembrava que a discussão sobre decisões clínicas a respeito da distinção entre normal e patológico é, na verdade, um setor de decisões mais fundamentais da razão a respeito do modo de definição daquilo que aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.).
Elas se inserem em configurações mais amplas de racionalização que ultrapassam o domínio restrito da clínica.
A distinção entre normal e patológico, entre saúde e doença é o ponto mais claro no qual a razão se coloca como fundamento de processos de administração da vida, como prática de determinação do equilíbrio adequado dos corpos em suas relações a si mesmos e ao meio ambiente que os envolve.
No caso da distinção entre saúde e doença mental, vemos ainda como a razão decide, amparando práticas médicas e disciplinares, os limites da partilha entre liberdade e alienação, entre vontade autônoma e vontade heterônoma.
Assim, a reflexão sobre as ciências (em especial as ciências humanas) aparece como maneira para compreender como a razão moderna impõe normatividades que determinam nosso campo de experiências possíveis. Uma articulação inovadora entre crítica da razão e reflexão epistemológica era inaugurada por Foucault.
Com História da Loucura, a filosofia podia agora encontrar uma nova definição: “discurso crítico em relação àqueles discursos que moldam nossas vidas e aspiram a validade categórica”.